Angueira, um Jogo de Sedução

NOTA: este texto é a tradução, com ligeiras adaptações, da versão que, em Mirandês e com o título “Angueira, la Sedutora”, no passado mês de junho, publiquei neste blogue.

Começando por lhe apresentar Angueira, antes de mais, vou dizer-lhe um segredo: a povoação é tão recatada que não se deixa ver de nenhuma outra em seu redor! Se tentar espreitar Angueira de outra povoação, vizinha ou mais distante, ou seja de onde for, apenas poderá ver parte do seu termo; da povoação, não verá mesmo nada! É que, de longe, só se deixa ver dos sítios mais altos do próprio termo. E, mesmo assim, só parte dela!

Se é de fora e a quiser ver, não tem outro remédio, senão, ir até lá!… Se for de carro, seja de Alcanices, em Espanha, seja de Vimioso, seja do Praino Mirandés, conhecido também como Tierra de Miranda, incluindo grande parte dos concelhos de Mogadouro e Vimioso, só quando chegar à “Chana” ou à Cruzic”, no cimo da Cuosta, começa a avistar parte dela. É que, só dos montes à sua volta, pode ver a maior parte de Angueira. Mesmo assim, não há um único sítio, nem mesmo o mais alto, de onde possa contemplar a povoação em toda a sua extensão.

As partes mais altas da povoação vistas do cimo do Serro dos Malhadais (Serra de Angueira), o sítio mais alto do termo de Angueira e de onde se veem também, ainda mais longe, a Especiosa e, atrás dela, o santuário do Naso. Foto do meu amigo Vítor Moreira, engenheiro de Braga, a quem agradeço a partilha.

Suba, então, até às Eiras Grandes e, do cimo da barreira dos Penhones, olhe em redor. Ao longe, num relance de olhos da esquerda para a direita, de nascente até norte, pode admirar a linha de horizonte que do alto de Peinha la Bela, passando pelas Temadas, o Sierro de San Joanico, o Sierro de ls Malhadales, o monte de la Gralheira, o Cabeço de la Quecolha e os altos da Chana e do Rodelhon; abaixo dela, a bacia desenhada pela primeira cadeia de montes do termo em volta da povoação: Cabeço Molhon, Cabeço l Cuorbo, a Cruzica, o Múrio, o Piquete, as Eiricas, o Cabeço de la Binha e os altos da Canhada e da Francosa; ao fundo dela, a ribeira e, nas suas margens, as hortas da Cabada e do Múrio; a seguir, e já mais perto de si, as casas do cimo do Pobo até Sante Cristo e algumas hortas e hortos do Pilo e do Cachon, a meio da povoação!

Da Cabada, passando pelo Múrio, pela Çanca, pela Salina, pela Mediana, pelos Puntones, pela Faceira de l Prado, pelo Areal, até à Faceira, às Uolmedas e às Antraugas, a ribeira é como que um colar ao peito de Angueira.

O “cimo de l Pobo” e a linha de horizonte da parte poente e norte do termo de Angueira. Da esquerda p’rà direita: “Sierro de ls Malhadales” ou “Sierra d’Angueira”, a “Gralheira” e o “Cabeço de la Quecolha”, vistos das “Eiras Grandes”.

É claro que pode ainda ver – e mal seria que não pudesse! – o casario de Angueira: do cimo ao fundo do povo; o Balhe, as Scaleiricas e o Ronso; a capela e o largo de Sante Cristo; a fonte do Pilo; os hortos e hortas do Balhe, do Pilo, do Cachon e da Çanca; e do meio de Saiago até ao Sagrado e à Eigreija.

Mesmo assim, dali de cima, não dá para ver todo o casario: de “Sante Cristo”, não se veem as casas da “Beiga de l Casal” e da “Mediana”; das casas da “Salina”, da “Çanca” e do “Cachon”, só pode ver os telhados; e, de “Saiago”, bem poucas são as casas que pode ver.

Olhando para mais longe, o alto do Pandon, o Sierro de San Joanico, o Sierro de ls Malhadales, o monte da Gralheira, o Cabeço de la Quecolha, os altos da Chana, do Milho e do Rodelhon formam a segunda cadeia de montes em redor de Angueira. Exceto entre o monte da Gralheira e o Cabeço de la Quecolha, de onde se avista Santa Marinha, para lá deles, estes montes e altos não deixam ver mais nada.

Como toda a gente sabe, dependendo do ponto de vista, as mesmas coisas parecem ser diferentes. Assim, talvez queira também ver as casas e a parte da povoação que, das Eiras Grandes, ficando escondidas, não se podem ver.

Vá, então, para lá da ribeira, até ao outro lado da povoação: ao alto do Múrio, o sítio de onde, talvez, as vistas de Angueira sejam as mais atraentes.

A povoação de Angueira, vista do alto do “Múrio”.

Dali, olhando à esquerda, da Çanca, por entre a Salina” e o Cachon, passando pela capela de Sante Cristo para o cimo de l Pobo, pode ver as casas encarrapitadas pela barreira de Sante Cristo acima e as do cimo de l Pobo descaindo pela Beiga de l Casal para a Mediana; olhando à direita, da Eigreija até à capela de San Sabastian, pode ver as casas de um lado e outro da rua dos Burmelheiros e, pouco mais acima, do largo de Saiago; olhando para o cimo de Saiago e acompanhando o fundo do monte das Eiras Grandes, avista as casas que, desde a capela de San Sabastian, passando pelo Ronso, vão dar até a meio da subida para as Eiras Grandes, ao lado do Balhe; olhando para o meio, entre as casas de Sante Cristo e as de Saiago e acompanhando o ribeiro do Balhe, desde a “Çanca”, pelo “Cachon” e pelo “Pilo”, pode ver os hortos e as hortas das margens do ribeiro até à fonte do Pilo. Mas, desde o “Ronso” e das Scaleiricas até ao fundo da Francosa, tanto do lado do bairro de Saiago como do de Sante Cristo, não pode avistar as restantes hortas nem algumas casas das margens do ribeiro do Balhe que ficam escondidas atrás da barreira de Sante Cristo.

Veja, então, como a povoação se aconchega nas casas encarrapitadas pela barreira de Sante Cristo acima e se explana também pelas hortas entre os bairros de Sante Cristo e de Saiago. A­­ssim, há vários, mas sobretudo dois pontos importantes – um no cimo e outro no fundo, cada qual em sua ponta da povoação – que não se avistam um ao outro: a casa da Scola e a Eigreija. Mas não julgue que é por não se entenderem ou não se darem bem uma com a outra. É que, ainda que não pareça, cerca de três quartas partes do século passado, cada qual ensinando seu catecismo, andaram ambas de mãos dadas. Mesmo assim, não foram capazes de acabar com o Mirandês. Angueira continua, assim, a ser uma das três povoações do concelho de Vimioso onde ainda se fala esta língua.

Desde que existe Angueira e a povoação é onde agora é, a fonte do Pilo sempre deu vida à povoação. Para além de permitir abastecer de água a sua gente e o seu chafariz dar de beber à cria, dá substância ao ribeiro do Balhe e fornece a água que permite regar os hortos e as hortas do Pilo e, juntamente com a fonte da Eigreija, os do Cachon. Como tantas vezes ouvi minha mãe dizer, nem na maior seca do século passado, a fonte do Pilo deixou de dar água para se abastecer toda a gente de Angueira.

Tanto das Eiras Grandes, a nascente, como do Múrio, a sudoeste, a povoação de Angueira aparece, à nossa frente, em todo o seu esplendor.

A não ser do ar, em Sante Cristo, a meio da povoação, não há nenhum sítio de onde se veja Angueira toda de uma vez: de longe, nem do alto do Marron no Sierro de San Joanico, nem do do Sierro de ls Malhadales, nem do Cabeço da Quecolha, nem do alto Piquete ou dos Carreirones, nem mesmo do da Cruzica; de perto, nem do Cabeço la Binha, nem do alto da Canhada ou da Francosa, nem mesmo das Eiras Grandes, nem de Cabeço l Cuorbo, nem mesmo do Múrio ou das Eiricas.

Se a povoação lhe mostra e fica, assim, a ver uma parte dela, pode crer que, como num jogo de sedução, Angueira vai escondendo mais duas ou três. Mas não julgue que é por mal!… Não, é que ela é mesmo assim!

Mesmo estando já no seu interior, andando pela povoação, é como se tivéssemos à nossa frente uma moça que, tirando mais uma peça de roupa, nos vai desvendando um braço, uma perna, uma parte do corpo de cada vez. Mesmo assim, resta sempre mais um pouco dela que fica escondido…

E qual de nós o mais tontinho à espera de se deslumbrar a ver-lhe as suas intimidades e, se calhar mesmo, a vê-la toda nua!… Mas, qual quê!…

Talvez seja por ser assim tão recatada que há lá quem, quando a conversa lhe não agrada, diga: “Põe-te aqui que hás de ver o castelo de Outeiro!”, o que, como pode imaginar, da povoação é uma absoluta impossibilidade!

Tenho para mim que, se for a Angueira com um pouco mais de tempo, não se arrependerá. É que também o seu termo tem os seus encantos. Poderá, então, ribeira abaixo e ribeira acima, sobretudo na primavera e, de manhã ou mesmo à tardinha, no verão, dar umas boas caminhadas pelas margens frescas. Do Gago, onde é a marra nascente do termo de Angueira com os de São Martinho e da Especiosa e acaba o concelho de Miranda do Douro e começa o de Vimioso, até à Ribeira de Baixo, onde o termo de Angueira pega com os de Avelanoso e de Serapicos, pode apreciar ribeiros, hortas e lameiros; açudes, calendras, moinhos e casas do moleiro, um sistema inteligente – que, provavelmente, terá sido obra dos monges do mosteiro de Moreyruola – de regularização das cheias da ribeira no inverno e de aproveitamento da água que, no verão, para além de fazer girar as mós dos moinhos para moer trigo e centeio, dava também para regar as hortas; as paisagens, a vegetação e, acima de tudo, espreitar e escutar a passarada toda. Era assim que, nos anos 50 e 60 do século passado, aos sábados e domingos do final da primavera até ao fim do verão, os barragistas costumavam fazer para pescarem alguns escalos e barbos e apanharem muitos caranguejos (lagostins de pata branca), que, até há bem pouco tempo, eram muito abundantes na ribeira de Angueira.

Já que está junto à ribeira, se for no verão, aproveite para retemperar forças, dar um mergulho e descansar um pouco à sombra dos choupos do Parque de Merendas da Cabada. Mas, se preferir andar a pé ao longo da ribeira – da Cabada até às Antraugas –, poderá, então, desfrutar de frescas sombras e observar as zonas de hortas mais próximas da povoação: as da Cabadica, do Múrio, da Çanca, da Salina, da Mediana, dos Puntones, do Areal, da Faceira, das Uolmedas e das Antraugas.

Parque de Merendas da “Cabada”.

É claro que as belezas do termo de Angueira não se reduzem a estas. Acompanhando o percurso dos vários ribeiros nele existentes – os de Belharino, da Puontelhina, dos Milanos, de Fuontecinas, da Cabanhona, do Balhe, de Souganho, do Prado e de Bal de Xardon, para referir apenas os maiores –, poderá observar hortas e lameiros e as variedades da fauna e da flora existentes nas suas margens. Se, excluindo as margens da ribeira, dos vales mais distantes do termo, há quem prefira o de Belharino, o das Lhameiras, o do Ramalhal, o de Fuontecinas até o Rodelhon, o da Francosa, passando por Boca ls Balhes, até à Rebolheira, o do Prado desde os Chapaçales até à Ribeira de Baixo e o de Bal de Xardon, a minha preferência vai para o da Puontelhina até Bal de Conde. É claro que, nas margens da ribeira e a montante da Cabada, não poderia deixar de visitar as hortas de Ourrieta Caliente, da Yedra e de Terroso e os açudes, moinhos e casas de moleiro da Senhora, da Yedra e de Terroso.

Mas não julgue que já lhe disse tudo!… Lembrando a história de Angueira, é provável que, antes de lá chegarem os Romanos, os Celtiberos vivessem nos dois castros existentes no seu termo: um, a jusante, na margem direita da ribeira e a cerca de um quilómetro a norte da povoação, mesmo no cimo do Cabeço de la Quecolha; outro, a montante, na margem esquerda, a cerca de três quilómetros a nascente da povoação, no Castro”, um sítio alto, um pouco acima de Terroso e do açude dos Regatos e ao lado do Juncal, cerca da marra do termo de Angueira com os de São Martinho e da Especiosa. Tal como o saudoso Amadeu Ferreira, também eu estou convencido de que, provavelmente para acabarem com os seus ataques, os Romanos tê-los-ão obrigado a baixarem dos montes e passarem a viver onde é a povoação.

Estela de granito encontrada na “Canhada d’Ourrieta l Castro”, ao fundo do “Cabeço de la Quecolha”.

Conta-se também, que, talvez no século VIII ou IX, quando por lá andaram os Mouros, os Cristãos, comandados por um valente guerreiro, os terão derrotado numa batalha que travaram em Cruç Branca. Após isso, esse guerreiro terá ficado a viver e sido enterrado junto da capela de San Miguel, aquela que, segundo o mencionado ilustre mirandês, será a ou uma das mais antigas da região.

Foto de Francisco Afonso (neto da “tie” Beatriz e do “tiu” Chic’Albino e da “tie” Domicília e do “tiu” Stroila) a quem agradeço a cedência.

Verdade ou mentira, afianço-lhe que me lembro de ouvir dizer que o tiu Alexandre, pai de Francequito e do senhor Zé Fuda, quando andava a lavrar a sua sorte, próxima e a nordeste da referida capela, por mais que uma vez, desenterrou com o arado ossos e caveiras. E, uns anos antes de fazerem as obras de recuperação da capela, pelo lado de fora e entre a esquina da capela voltada a noroeste e a parede do riceiro da horta do tiu Zé Luís Pero, Manuel Quinteiro e outros homens deram com um túmulo, todo em pedra, que, hoje, se pode ver mesmo em frente da fonte do Pilo. Assim, tudo aponta no sentido de que, ali, à volta da capela, tenha havido uma necrópole.

Pedra tumular encontrada cerca da esquina poente da capela de “San Miguel” e da parede da horta dos Peros.

Bah, de que está à espera?! Calce as sapatilhas ou umas alpercatas e vá até lá!

Ou então peça a sua adesão ao grupo “Angueira Atalaia”:

Angueira comVida!


Uma resposta para “Angueira, um Jogo de Sedução”

  1. 0la António! As suas histórias, a sua pormenorização, a sua ligação à esta aldeia é contagiante,fantástica. Um grande abraço e um Bom Natal (2021???, mas sejamos positivos)

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