Pela Terra de Miranda (versão em Português)

Agradeço ao amigo David Ferreira o amável convite que, em jeito de desafio, me fez para escrever um texto em Mirandês para o partilhar na página do Facebook do Movimento Cultural da Terra de Miranda. Esta é uma das razões de ter escrito “Pula Tierra de Miranda”. Para além de uma visita virtual e guiada ao Planalto Mirandês, este texto é também uma forma de homenagear as/os mirandesas/es que souberam preservar a sua cultura: as maneiras de ser, de viver, de trabalhar, de vestir, de conviver e de se divertirem, bem ainda a sua “Lhéngua”. Preserveram, assim, a sua identidade cultural que, nem o padre na igreja, o/a professor/a na escola, nem quaisquer outras formas de pressão social sobre elas/es exercida, a conseguiram apagar, contrariar ou derrubar.

Convido-a/o a, por meados de junho, acompanhar o voo de uma pombinha – se calhar à procura de par –, pelo Planalto Mirandês. Faça então de conta que é o seu drone e deixe-se por ela guiar.

Manhã cedo, ainda antes do Sol despontar no horizonte e de se pôr a camino, que é como quem diz, de se deitar a voar do pombal, como a mãe não se cansava de a prevenir, a pombinha toma as devidas precauções. É que, como por ali se ouve dizer, quem tem rabo tem medo. Pondo-se, então, a espreitar o céu para todos os quadrantes, parece-lhe que o dia vai estar claro e de feição e, talvez por ainda ser cedo, também não vê qualquer sinal de andar por ali a voar qualquer águia ou gavião outra ave de rapina.

Da aldeia de Uva, perto do sítio onde os limites dos concelhos de Vimioso, Mogadouro e Miranda se tocam, bate as asas, ribeira de Angueira acima, caras a nordeste. Por povoações de Vimioso, mas perto de outras do concelho de Miranda – Fonte Ladrão, Granja, São Pedro da Silva –, lá vai ela: de Uva para Vila Chã da Ribeira, passando pelos Picadeiros, a Terronha e a marra entre os termos de Caçarelhos e da “Bila”, sobrevoando o termo e as povoações de São Joanico e de Serapicos, infletindo, primeiro, para sueste e, logo depois, para nascente, vai dar ao termo de Angueira. Pela fraga d’Águia, quase ao fundo e entre as vertente da Gralheira e do cabeço da Quecolha, num instante, vai dar ao Múrio, uma vertente rochosa a pique, de sopé quase colado à ribeira e ao lado da aldeia. Avistando a fonte na ladeira, pousa para beber uma pinga de água e encher o papo com umas sementes. Sim, que, como qualquer drone, também ela precisa de recarregar baterias! E, para descansar as asas, caminha até ao alto do monte e, parando um instante à sombra de uns carvalhos, aproveita também para contemplar as vistas da povoação.

Claro que, quando voava sobre a Fuonte Santa, vira água um tanto amarelada a borbulhar na nascente. Cheirando-lhe também a enxofre, não lhe pareceu estar grande coisa para se beber. Mas, talvez estivesse enganada, pois dizem que faz muito bem ao corpo, por dentro e por fora.

Sobrevoando, Cabeça la Binha, entre os moinhos da Nalsa e de Telhado, ao lado das lameiras das Antraugas, da fraga de San Biteiro e das hortas das Uolmedas e da Faceira, avista a vertente poente da povoação de Angueira e as hortas da Mediana e da Salina na margem direita da ribeira e, na margem esquerda, os lameiros da Çanca e, depois, o Múrio.

Angueira: Moinho das Três Rodas ou dos Lucas em Terroso. Para além de açude e de calendra, dispõe ainda da casa do moleiro.

Continuando a voar, ribeira acima, da Cabada para a Senhora, Ourrieta Caliente, a Yedra, Terroso e entre o Castro e o Juncal, vai dar ao Gago, onde as marras marcam o fim do termo de Angueira e do concelho de Vimioso e o início dos de São Martinho e da Especiosa e do concelho de Miranda; de seguida, sobrevoando o termo e a povoação de São Martinho, segue até à raia, ao sítio onde a ribeira, vinda de Alcanices em Espanha, entra em Portugal.

Lá do ar, de Uva até à raia, em todas as povoações que sobrevoou, viu pombais, corriças, moinhos, casas de moleiro, açudes e calendras – a maior parte deles abandonados e a ameaçar ruína –, pontes e pontões, hortas, lameiras/os, veigas e ribeiros, como também matas de carvalho, freixos, amieiros e choupos em grande quantidade e ainda algumas carrasqueiras e olmeiras. Lamentavelmente, os olmos de grande porte e muitas trepolas, que, juntamente com os choupos, mais parecia andarem ao desafio para ver quais deles seriam as árvores mais altas que antes havia por estes lados, mas que. há muitos anos, a seguir ao acidente nuclear de Chernobyl, tinham secado. Para além dos porcos que deixaram de ter a folha nas caldeiradas, quem pagou também foi a cegonha que, devido a isso, ficou sem ninho.

Para além de avistar algumas pessoas nos caminhos, burros e boiadas nos lameiros e um ou outro rebanho por terras ou montes do termo, a nossa pombinha não se cansa de escutar a sarabanda daquela orquestra de tantos e várias espécies de pássaros a chilrear, cada qual à sue maneira, mas todos ao mesmo tempo, nas margens da ribeira.

O ribeiro dos “Milanos” no início da primavera e perto da “Retuorta” e da “Yedra” onde desagua na ribeira de Angueira. Foto da amiga Fátima Malheiro a quem agradeço ter-me autorizado a publicá-la.

Sobrevoando depois os montes da raia ao lado de Cicouro, antes da povoação, avista aquela capela que, com o seu campanário de pedra, quase parece uma igreja. A seguir, pelo lado de Constantim, chega ao monte e à capela da Senhora da Luz. depois de planar um momento no ar, deixando para trás a raia, esvoaça para o Naso. Ainda nem seria meia manhã quando pousa na cruz do campanário da igreja do santuário. Dali mesmo, começa, então, a olhar em redor.

Vistas do campo da feira no santuário do Naso caras a poente: a povoação da Speciosa, os serros e os cabeços de Angueira, a serra de Avelanoso e os montes de Vale de Frades e Vale de Pena por onde passa a raia; da esquerda para a direita, as serras de Bornes, Nogueira i Montesinho e, lá atrás e mais longe, a serra da Sanábria, já em Espanha.

De nascente a poente, no sentido dos ponteiros do relógio, acompanha o arco desenhado pelo Sol. Ao longe, olhando da terra ao céu, enche os olhos e a alma com uma paleta de cores, que, de verde, vai variando a dourado, amarelo e castanho, e de azul, a cinzento e a branco. De longe a longe, avista algumas povoações.

Olhando para nascente, para trás da Póvoa, Ifanes e Paradela, o sítio onde primeiro começa por dar o Sol em Portugal, arregalando os olhos, acompanha as Arribas do Douro, que, tanto do lado de Portugal como do de Espanha e para cá e para lá da cidade de Miranda, escondem o rio e as suas barragens.

Binóculos, para quê? Que, não sendo nenhuma pita-cega, nem deles precisa. Basta-lhe fazer “zoom” com os olhos e já está. Mesmo assim, dali, não consegue alcançar nenhum miraDouro, nem Miranda do Douro, nem as vinhas, nem mesmo as povoações, que, para cá ou para lá da cidade, ficam perto das Arribas.

Para sul, dá de caras com aquele lençol plano, quase sem rugas, que, desde o sopé dos montes, mesmo ali ao lado e por onde passa a raia, e das Arribas, para cá e para lá de Miranda, se estende até ao sopé dos montes e serras de Mogadouro e de Macedo.

Caras a poente, mais ao longe, a linha de horizonte desenhada pelas serras de Nogueira e de Montesinho e, atrás e ao lado desta, pela de Sanábria, já em Espanha; baixando para Bragança e passeando os olhos pelo castelo e pelos montes que ocultam os rios Sabor e Maçãs, observa as terras planas entre os montes e os castelos de Outeiro, de Algoso e de Penas Roias; nas terras planas de cada lado dos montes por onde, ao fundo, corre o rio Maçãs, avista, para lá do rio e mais longe, Argoselo, Carção e Santulhão, ficando a Matela, Junqueira e a Abinhó escondidas atrás dos montes; para cá do rio e mais perto, Pinelo, Campo de Víboras e Algoso, ficando Vale de Algoso escondido num vale; e, a meio e entre todas estas povoações, a “Bila” (Vimioso).

Paisagem e linha de horizonte de Santulhão caras a poente. Foto partilhada por David Lopes em “Santulhão Atalaia” e a quem agradeço a amabilidade de me ter autorizado a publicá-la.

Apontando os olhos para norte, repara, depois, nos montes por onde passa a raia que, de Vale de Pena e Vale de Frades, continuando pela serra de Avelanoso, vai dar à fronteira das Três Marras; ainda mais perto, perfilam-se e destacam-se os serros e os montes de Angueira, entre e ao fundo dos quais, como de manhã bem viu, corre a ribeira.

Já que aqui está, descansou um bocadinho e ainda é cedo, para ver melhor e em mais pormenor o Planalto, aponta o bico e ala para Miranda. Entre os termos de Malhadas, dum lado, e da Póvoa e Ifanes, do outro, para por uns momento numa seara de trigo e toca a encher o papo com umas sementes. Voa, depois, para mais abaixo, sobre uns lameiros nos dois lhados de um ribeirito. Ouvindo uma campainha, repara numa boiada – mais de uma dúzia de vacas, todas de raça mirandesa, de três ou quatro vitelitos, um bezerro ainda mamão e um touro corpulento e todo pimpão – a pastar a erva mais fresca junto do sulco da água e ao redor da fonte. Toda vaidosa com a sua coleira larga e de pele de vaca cravejada de dourado à volta do pescoço, a vaca da campainha é das mais novas e a mais elegante. E, à volta dos freixos junto à parede da borda mais seca do lameiro, nem sequer falta uma burra e o seu burrito a morder os rebentos de uma freixieira.

Voando, depois, até um pouco antes do Palancar, aponta os olhos caras ao Douro e avista Pena Branca. Mas, por mais que lhe custe, nem pensar em ir até Aldeia Nova e ainda menos ao miraDouro de São João das Arribas e mesmo a Vale d’Águia. Tanto mais que, ao longe, mas para aqueles lados, avista um bando de aves a planar, descrevendo vários círculos no ar. Não dando para ficar a saber se são abutres ou águias ou ainda outras aves, de uma coisa fica com a certeza: são aves de rapina.

Esvoaça, então, rio Fresno abaixo, para Miranda. Mal lá chega, pousa na torre mais alta, mas ruída em parte, do castelo. Enquanto descansa um pouquinho, põe-se a contemplar a cidade: à esquerda, a parte nova e, em frente e à direita, a parte velha, dentro das muralhas. Mas que bela cidade e que bem cuidada está!

Num voo ligeiro sobre o casario, vai a dar ao Largo D. Afonso III, ao cimo da Rua da Costanilha e entre o Museu da Terra de Miranda e os Paços do Concelho. Lá de cima, dá para ver o mundo de pessoas que ali estão ou lá se cruzam. Algumas delas param algum tempo a contemplar, fotografar ou filmar os enfeites, os edifícios e as estátuas da moça e do moço, uma em frente e a olhar para a outra e ambas vestindo trajes mirandeses.

Rua que vai dar à Sé de Miranda do Douro. Foto da amiga Maria da Luz Fernandes Pires a quem agradeço ter-me autorizado a publicá-la.

Deixando para trás a praça, vai pousar no cata-vento da torre da esquerda da Sé. Sentindo-se ali bem mais segura, põe-se então a contemplar, a norte e a nascente, as Arribas de um lado e outro do rio que passa lá em baixo, e a pousada em cima; do outro lado, aquele rochedo castanho raiado de amarelo que parece precipitar-se no rio; quase à frente e em baixo, a barragem que, para além de produzir eletricidade, dá para passar de lá e para cá de Portugal ou de Espanha. A pombinha abre a boca – é como quem diz, o bico –, de espanto ao ver tantas pessoas, umas a sair outras a subir para o barco e, navegando rio acima e, depois, rio abaixo, a visitar, observar, fotografar ou filmar as Arribas e os abutres, águias e outras aves de rapina, os precipícios e aquelas vistas deslumbrantes das margens do Douro.

Não fosse ter que ir a mais lados, antes de voltar para casa – ou, dizendo melhor, para o pombal –, e talvez por ali ficasse pasmada mais umas horas.

Ainda que bem lhe custasse, mas para não correr riscos, nem sequer se atreve a voar para as Arribas, nem para cima nem para baixo de Miranda e ainda menos para lá do rio. Assim, tem de contentar-se com olhar lá para baixo e em frente para a barragem e o bem conhecido rochedo do lado de lá do rio. E, pasmada com tudo quanto vê, não lhe falta vontade de espreitar também o interior da Sé, especialmente, o famoso Menino Jesus da Cartolinha. Mas, estando muitas pessoas à porta, com tal vontade fica. Mesmo assim, ainda lança os olhos sobre aquela arcada que, em tempos, era a parte de baixo do paço episcopal.

Ainda lhe faltava bem que ver na cidade e à sua volta, mas, passando já de meio-dia, havia que continuar a voar para visitar e ver ainda tanta coisa mais…

Então, com Vale de Mira, à direita, sobrevoa Cércio e, de seguida, por entre Freixiosa, à esquerda, e Duas Igrejas, à direita, continua viagem para Picote.

Avistar Duas Igrejas lembrou-lhe ouvir dizer ser lá que, dantes, as pessoas apanhavam o comboio. Mas, agora, passados já quase quarenta anos, nem comboio nem mesmo linha há para o apanhar. E, se ainda lá está a estação, é só porque de lá não a conseguiram tirar! Então, que remédio tem senão continuar a voar. Vá lá que, pelo menos assim, dá para apreciar melhor as vistas de um lado e do outro de por onde passar.

Depois, esvoaçando ao lado da povoação de Vila Chã da Braciosa e com Fonte Aldeia à direita, segue para Picote e, de propósito, vai diretamente para o miraDouro da Fraga do Puio.

Está bom de ver que tem que andar – ou, dizendo melhor, voar – por ali de olho bem listo e com todo o cuidado, não vá uma águia ou algum gavião atirar-se a ela e deitar-lhe as garras. Mas, vale bem a pena correr tão grande risco. É que as vistas daquele precipício sobre o rio, da barragem, de ambos os lados das Arribas, do termo e do casario da povoação de Picote e do Barrocal do Douro – mesmo que as casas dos engenheiros estejam ali ao abandono e tão mal cuidadas que é uma pena – são mesmo de cortar a respiração, de arregalar bem os olhos e de encher a alma! Quase parece que a natureza e o homem se deram as mãos para nos deixarem aquela maravilha!

Continuando, depois, a sobrevoar o termo, por cima de alguns pomares, vinhas e searas de trigo, vai dar à vila de Sendim. Fosse ela gente e, certamente, como as pessoas que ali se vêem, umas à porta e outras no interior do restaurante, também não passaria sem se regalar a comer a posta na Gabriela.

De Sendim, com Urrós à direita, voa até à barragem de Bemposta. Mais uma vez, fica espantada com a beleza daquelas paisagens e vistas das povoações. Só lhe dá pena ver, como vira também na encosta próxima da barragem de Miranda, aquela vergonha, o dano ambiental e o perigo para as pessoas, que representam as pedreiras a céu aberto que, na barreira do lado de cá, ali deixaram os responsáveis pela construção e, mais tarde, pela administração das barragens.

Ainda lhe passa pela cabeça pôr-se a caminho – ou melhor, voar – de Mogadouro. Mas, como já não daria tempo e tem ainda pela frente uma boa caminhada – é como quem diz, um grande voo a dar –, muda de ideias. Assim, a visita a Mogadouro e à maior parte das povoações do concelho terá de ficar para outro dia.

Então, toca a andar – ou melhor, a voar –, que se faz tarde. Passando já de meia-tarde, com o Sol a dar-lhe quase de frente, voa do termo de Bemposta para o de Urrós, onde avista as ruínas duma capela bem antiga, mas de rara beleza, e aquele vale onde algumas pessoas de lá têm as suas “bodegas”. Chegada à parte mais alta do termo, continua por entre Travanca e Sendim e depois ao lado de Saldanha, o mais a direito e ligeira que pode, voa para a Atenor. Tanto do lado de Miranda como do de Mogadouro, avista o mesmo tipo de paisagens: vinhas, pomares, alguns lameiros, terras de arada e searas de trigo que, de um verde desbotado, parecem aproximar-se do dourado. De seguida, com Prado Gatão à direita, por entre Teixeira e Palaçoulo e, depois ao lado de Mora e com Fonte Ladrão à direita, avista ao longe os termos e as povoações de Águas Bibas, Saldanha, Algoso e o seu belo e altaneiro castelo sobre aquele rochedo quase a despenhar-se sobre a ribeira de Angueira e ainda a torre do castelo de Penas Roias.

Claro está que já não avista tantas searas como os avós lhe diziam ver-se dantes, quando as trigueiras e as aradas ocupavam a maior parte das terras de cultivo do Planalto. Mas, sendo fim de tarde, tal como antigamente, avista também rebanhos a sair do esteio e a caminho de algum ribeiro e boiadas já a caminho de casa. Se as ovelhas, já tosquiadas, seguem, umas coladas às outras, atrás do pastor, é o boieiro que, atrás da fila de vacas, segue a boiada.

Está já o Sol a pôr-se, quando a pombita chega ao seu pombal em Uva. Estafadinha de todo, quem sabe se, como se ouve por aí dizer, também ela dirá lá com os seus botões: “Só me apetece caldo e palheiro!”

Foi uma pena que, desta vez, não tenha dado para passar e parar, pelo menos um instante, em Palaçoulo. Mas, como esta povoação não fica longe de Uva, um dia destes há de dar um voo até lá, aproveitando, assim, para visitar a povoação e ver as fábricas de facas e de pipas e o mosteiro das freiras italianas. E, como ficam a caminho, quem sabe se, na ida ou na volta, não aproveitará também para visitar as minas de Santo Adrião, São Pedro da Silva, Vilar Seco, Caçarelhos, Genísio, Águas Vivas, a Granja, Prado Gatão e até mesmo Duas Igrejas.

Como qualquer povoação, também cada pessoa é como é, diferente das demais. Mesmo para quem não saiba ler nem escrever, a vida é como um livrinho onde, dia a dia, vai anotando mais um pouquito da sua. A maior parte das pessoas do Planalto e arredores foram escrevendo na Língua que, em casa, com os familiares, e, na povoação, com os vizinhos e amigos, aprenderam e se afizeram a falar: o Mirandês. Mesmo assim, com o padre na igreja, o/a professor/a na escola, com a gente fidalga e as pessoas de fora que falavam a outra nossa Língua, aprenderam também a falar grave: o Português.

Ainda antes da nacionalidade e durante muitos séculos, as gentes de Miranda, de Mogadouro e de Vimioso sentavam-se à mesma mesa, alimentavam-se do mesmo caldo, cozinhado com os mesmos ingredientes e temperos e ao lume no mesmo pote cultural. No entanto, as continuidades territorial, social e cultural não impediram a imposição de uma descontinuidade político-administrativa vinda de fora. Há cerca de dois séculos, a estabilização das localidades que, até hoje, integram cada um dos municípios ajudou a acentuar alguns dos traços que, atualmente, os diferenciam. Contudo, as suas gentes continuaram a encontrar-se, a conviver, a confraternizar e a celebrar em comum nas feiras e festas da Luz, do Naso, de Malhadas, dos Gorazes, de Caçarelhos, de Miranda, de Mogadouro e de Vimioso. Apesar das diferenças, integrando cada um dos concelhos a Terra de Miranda, as suas gentes são sensíveis ao apelo à sua (re)aproximação. É que, ainda antes e após a formação de Portugal, partilham as mesmas identidade e matriz cultural: os modos de falar, de ser, de (con)viver, de trabalhar e de se divertirem. Para além disso, vivenciam idênticos problemas, especialmente, a hemorragia demográfica provocada pela diáspora, que, a partir do início dos anos 60 do século passado, se traduziu no despovoamento das localidades que os integram, no definhamento da atividade económica e no envelhecimento da população que, resistindo a tudo, nelas continua ainda a viver. Ameaçando comprometer a própria viabilidade de cada um dos três concelhos, é natural que, conjuntamente, tentem encontrar solução para estes problemas.

Chegou a hora de, em vez de continuarem de costas voltadas e cada qual a olhar para o seu umbigo, os concelhos de Miranda, de Mogadouro e de Vimioso darem as mãos. Ainda que tenham as suas diferenças, é bem mais o que pode unir que o que separa as povoações e a gente da Terra de Miranda.

Parque de Merendas na Cavada em Angueira. Era aqui que, nos sábados e domingos de verão dos anos 50 e 60 do século passado, os barragistas costumavam parar para pescar, apanhar caranguejos, nadar, refrescar-se i descansar.

À primeira vista, a criação do Movimento Cultural da(s) Terra(s) de Miranda teve sobretudo a ver com as barragens. A respeito destas, deixe que lhe lembre uma coisa: nos anos 50 e 60 do século passado, era eu garotito, de manhã à tarde dos sábados e domingos do verão, nas valetas da estrada entre a Cavada e a igreja e nas bordas do caminho da Sanca para os Pontões, viam-se tantos automóveis estacionados… Eram dos barragistas que, com as suas famílias, iam de propósito, a Angueira para a pesca, a apanhar caranguejos, e nadar, refrescar-se e descansar nas sombras bem frescas das margens da ribeira. Provavelmente, terá sido nessa altura que, pela primeira vez, ouvi aos barragistas dizer: “Bota p’rá barragem de Miranda que a de Picote já não anda!…”

Mas a criação do Movimento Cultural não teve apenas a ver com as barragens de Miranda, Picote e Bemposta, como a criação da Rede Atalaia também não teve só a ver com a reduzia participação dos cidadãos do concelho de Vimioso nas eleições. Ambas tiveram mais a ver com a necessidade de, quanto antes, ajudar a criar as condições para revitalizar a Terra de Miranda, ou seja, as localidades dos concelhos de Miranda, Mogadouro e de Vimioso.

Os problemas da Terra de Miranda, como, se não de todas, pelo menos da maior parte das localidades do Nordeste Transmontano e até mesmo de todo o Interior do País, não sendo apenas de hoje, vêm já de mais atrás. Basta lembrar o que, após o cabido da Sé e decorridos dois anos sobre o cerco à cidade, em 1764 e num invulgar e peculiar ato de “coragem” e “bravura”, Don Frei de Miranda Henriques, o 23.º e último bispo de Miranda, lhes fez: abandonou a cidade e escapou para Bragança. Trata-se de um rico exemplo que – como, desde o século passado até hoje, o povo da Terra de Miranda está cansado de ver – não havia de ficar sem seguidores: os governantes de Portugal que parece quererem imitá-lo.

A ver se, desta vez, o povo da Terra de Miranda se levanta e não se contenta apenas com, em paga e para que ninguém de Miranda se esqueça, gravar na pedra tumular do referido bispo: “Aleixo, bispo indigno (…) 1764”. Sim, que, como escreveu o saudoso e ilustre mirandês Amadeu Ferreira e os Galandum Galundaina tão bem cantam, “ESTA MALTA NUN ARREDA!”

Se quiser aceder à versão em Mirandês deste texto, carregue no “link”: https://angueira.net/2021/04/19/las-tierras-de-miranda/


3 respostas para “Pela Terra de Miranda (versão em Português)”

  1. Olá amigo António Torrão, é digno dos mais sinceros parabéns, pelo maravilhoso passeio da pombinha. Desta vez encontrou-me com paciência para ler minuciosamente, e com pormenor do princípio até ao fim, de toda a viagem da pombinha e de quem a inventou com tanto pormenor e cuidado. Não há dúvida que não se esqueceu de nenhum pormenor. Eu julgo que conheço aquilo muito bem, mas ainda me falta muito, ainda fiquei a aprender umas boas coisas dessa viagem e de todos esses pormenores.
    Gostaria eu de ter a sua capacidade que invejo, mas as caminhadas da minha vida não tiveram os mesmos princípios das suas. Mas cada qual é como é e não nos podemos ou devemos arrepender de todo o percurso corrido e percorrido. Por meu lado, com as simples armas que tinha ainda deu para ganhar algumas batalhas.
    Mais uma vez os meus sinceros parabéns e um Abraço Especial deste que se considera seu amigo
    Manuel Joaquim

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    • Obrigado, amigo e conterrâneo Manuel Joaquim, por tão generosas palavras. Os amigos são assim!… Tendem a exagerar-nos as qualidades, se algumas temos, e a esquecer, ou mesmo a apagar, os defeitos que nos não faltam. Do nosso percurso de vida, não somos apenas nós próprios os únicos autores. Mas, como bem diz e o seu, exemplarmente, ilustra, ajudamos também a desenhar aquilo a que há quem chame o nosso destino. O importante é que, quando chegar a hora de nos olharmos ao espelho, não tenhamos que nos envergonhar da imagem que nos é devolvida. O seu percurso de vida é um singular testemunho de que não há a mínima razão – bem pelo contrário! – para isso. Um abraço, caro amigo.
      António Preto Torrão

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