Será que o Poder Central se redime das políticas que condenaram o Nordeste Transmontano, especialmente a Terra de Miranda, ao despovoamento e ao abandono?

A criação do Ministério da Coesão Territorial e a localização da respetiva secretaria de Estado em Bragança parece serem, talvez mais do que um indício, um sinal de que se pretende melhorar o panorama geral do País, mudando o paradigma das velhas políticas seguidas até à atualidade pelos governos do século passado e pelos que, já neste século, antecederam o atual.

Contrariamente ao que se passou nas Regiões Autónomas da Madeira e dos Açores, que, a partir da entrada de Portugal na CEE, usufruíram de avultados fundos da União Europeia (EU) que lhes proporcionaram a possibilidade de realizarem largos investimentos, o interior do Continente, especialmente o Nordeste Transmontano, continuaram a ser discriminados e a “ver navios”, em termos de investimento público e privado, em relação ao litoral. Assim, os Governos dos anos 80 e 90 do século passado, para além de incentivarem o abandono da agricultura tradicional, encerraram as três linhas férreas de via estreita – Sabor, Tua e Corgo –, que, embora mal e porcamente, com material circulante lento, incómodo e obsoleto, iam, apesar de tudo, servindo Trás-os-Montes.

Ultimamente, o atual Governo tem andado em périplo pelas capitais, cidades e vilas dos distritos do interior. Contudo, mais que as palavras e as promessas, interessam os atos e as realizações. Esperamos que, não se tratando de mera propaganda, represente uma séria e decisiva aposta na coesão territorial do País.

É chegada a hora de o atual Governo redimir o Poder Central do abandono a que, por ação ou omissão, os governos da Ditadura e mesmo os posteriores ao 25 de Abril de 1974, por falta de investimento no interior, contribuíram para a diáspora e ajudaram a sugar a população para as localidades do litoral e que, por essas vias, conduziram ao despovoamento e à hecatombe demográfica que afetam Trás-os-Montes, especialmente o Nordeste Transmontano e, ainda mais gravemente, a Terra de Miranda: os municípios de Miranda do Douro, Vimioso e Mogadouro.

Com a mobilização dos aderentes aos movimentos cívicos criados na Terra de Miranda – a Rede Atalaia, primeiro (2018), e o Movimento Cultural da Terra de Miranda (MCTM), mais recentemente (2020) – e, especialmente, com a elaboração e a discussão pública do Plano Estratégico da Terra de Miranda (PETM), o Movimento Cultural da Terra de Miranda dotou os referidos municípios e o próprio Governo de um plano de desenvolvimento para esta zona do País. O Poder Central e o Poder Local passaram, assim, a dispor de um instrumento, que, funcionando como bússola, pode nortear a sua ação neste território.

Entre os seus projetos de ação, o PETM acolheu a proposta da equipa de quatro engenheiros, que, em nome da Associação Vale d’Ouro e pro bono, procedeu ao estudo comparativo, em termos de percurso, de população servida, de impacto económico e ambiental, de redução de tempos de percursos e de custos do projeto e da viabilidade da sua concretização, fundamenta e sustenta a sua proposta de opção pela construção da via férrea de alta velocidade (AV) de ligação do Aeroporto Francisco Sá Carneiro, passando por Paços de Ferreira, Amarante, Vila Real, Murça/Alijó, Mirandela, Macedo de Cavaleiros, Bragança e Terra de Miranda, à linha do AVE Vigo – Madrid, em Zamora, e, pelo norte de Espanha, à França, em detrimento da linha de ligação de Aveiro, passando por Viseu, Guarda e Vilar Formoso, até Medina del Campo e seguindo depois para Madrid.

Porém, para meu espanto, há poucos dias, pela voz do secretário de Estado das Infraestruturas, que, a convite da/o sr.ª/sr. Deputados distritais do Partido Socialista, se deslocou a Bragança, os Transmontanos foram brindados, em pleno inverno, com mais um banho de água fria. Afastando-se da posição assumida pela sr.ª ministra da Coesão Territorial – que havia declarado anuir à estratégia delineada pelo MCTM, adoptando-a como sua e possível modelo a aplicar a outras zonas do interior do País, se comprometeu a apoiar a concretização das propostas contempladas no PETM –, o referido sr. secretário de Estado, sem o mínimo pudor e qualquer respeito pela gente do Nordeste Transmontano e desprezando o trabalho desenvolvido pela equipa que, pro bono, produziu os estudos preparatórios da viabilidade de construção de uma via férrea de AV, ligando o Aeroporto Sá Carneiro às capitais de distrito e outras localidades importantes dos distritos do Porto, Vila Real e Bragança, seguindo, depois, pela Terra de Miranda até Zamora, com ligação a Madrid e, pelo norte de Espanha, a França. Fazendo letra morta desta proposta, o sr. secretário de Estado produziu declarações, que, parecendo afastar-se das linhas de força da ação do atual Governo, decalcam a bafienta cartilha política anteriormente seguida pelos governos do antes, mas também do pós 25 de Abril.

O Toural da feira, a nordeste do Santuário do Naso.

A partir dos anos 80 do século passado, o Nordeste Transmontano talvez tenha sido uma das zonas “privilegiadas” do território mais “prontamente contemplada” com o encerramento das linhas de caminho de ferro de via estreita. Agora, o dito sr. secretário de Estado, seguindo uma estranha forma de “compensar” Trás-os-Montes dos desmandos e arbitrariedades com que o “presentearam”, remete a construção da via férrea de AV que serviria (servirá?!) Trás-os-Montes para as calendas ou, recorrendo a uma expressão mais popular, para o Dia de São Nunca à tarde. Parece, assim, considerar que Trás-os-Montes não precisa – quiçá, nem merece! – que lhe seja conferida qualquer prioridade de forma a poder ser contemplada com investimento público na ferrovia. De uma só penada, deu, assim, mais uma machadada no sonho acalentado por aqueles que mantinham a esperança de que o atual Governo não perderia a oportunidade para, convertendo o múltiplas vezes reiterado círculo vicioso em virtuoso, redimir o Poder Central das discriminações arbitrárias com que, no passado, “premiou” Trás-os-Montes e o restante interior e que conduziram ao despovoamento de cerca de 2/3 do território do Continente. A litoralização dos investimentos e a consequente fixação de cerca de 2/3 da população na estreita faixa litoral compreendida entre Braga e Sines foram erros sucessivamente repetidos pelos vários governos que, há mais ou há menos tempo, antecederam o atual.

Vejamos, então, como o sr. secretário de Estado das Infraestruturas equaciona o problema: a “espinha dorsal” ferroviária, por ele referida, tem, a meu ver e desde longa data, vindo a assistir à concentração do investimento público e privado no litoral. Nas “doutas” palavras do referido governante, “A geografia é o que é”(!…)” Terá sido assim que o País chegou ao lamentável estado em que, atualmente e mesmo nas suas palavras, se encontra: “Portugal “tem a população quase toda no eixo Braga/Faro e todas as infraestruturas de transporte se ligam (…) a esse eixo”, pelo que “sem estruturar esse eixo a utilidade das outras infraestruturas fica muito prejudicada.”” (Ver a página: https://eco.sapo.pt/2023/02/27/governo-rejeita-comecar-ferrovia-por-tras-os-montes-e-nao-promete-alta-velocidade/?fbclid=IwAR3DHN0ZdONln-bIKK75snq-hFkFYeoAu4GTFiHQUhLsNOLrC5xIZjHHLLc – consultada em 5 de março de 2023).

O referido governante parece esquecer que a geografia, sobretudo a humana, está longe de ser a única condicionante da distribuição da população pelo território. Mais que condicionada pelas condições físicas ou naturais, embora sem deixar de as ter em conta, a ocupação humana e a distribuição da população pelo território são, acima de tudo, condicionadas pelos investimentos realizados, ou pela falta deles, e, no caso de Trás-os-Montes e do restante interior, pelo abandono a que, pelo menos, desde meados do século passado, o Poder Central os tem vindo e continuado a condenar. Foi assim que, nos anos 60 e 70, e, nos anos 80 do século passado, o Poder Central tem vindo a “aproveitar”, primeiro, as remessas de divisas dos emigrantes e, após a entrada de Portugal na CEE, os Fundos Europeus – destinados a promover a coesão europeia, aproximando o nível de desenvolvimento dos países periféricos/menos desenvolvidos ao dos países centrais/mais desenvolvidos da UE – para, “avisada, acertada e coerentemente”, continuando a concentrar o investimento público e privado no litoral, aprofundar o diferencial de desenvolvimento entre as regiões do País. Assim, é nos mesmos locais onde sempre foram feitos os investimentos e que, por isso mesmo e que, para além dos países que acolheram os nossos emigrantes, sugaram a população das terras do interior, que o Poder Central continua a concentrá-los. Não admira, pois, que os desequilíbrios da distribuição da população pelo território, anterior e historicamente gerados, corram o risco de serem ainda aprofundados e mais agravados, quase mesmo “perpetuados”. Assim, com 2/3 da sua população a ocupar uma faixa litoral de menos de 30 kms a partir da linha costeira entre Braga e Setúbal e da faixa costeira algarvia, não será de admirar que, como, há muitos anos, dizia o saudoso dr. Eurico Lemos Pires, mais dia menos dia, Portugal caia ao mar. Depois, lavando as mãos como Pilatos ou vertendo lágrimas de crocodilo, imputam a responsabilidade pela situação aos governantes que os precederam. Ainda que com um trago amargo de boca, quase apetece dizer: Dizem que Portugal é pequeno!… Afinal e pelos vistos, até parece ser grande demais! Por este andar, qualquer dia ainda é capaz de aparecer por aí um político de meia tigela, mas dotado de vastos lampejos de “argúcia”, a propor-nos vender em saldo a qualquer outro país eventualmente interessado cerca de 2/3 do nosso território atual!

“O centralismo é uma doença de que o país padece e que é muito provocada pelo desconhecimento. (…) O centralismo é sempre justificado em nome de um suposto racional de eficiência, que depois sucumbe à monstruosidade e inoperância das máquinas que são criadas. E temos então esses exemplos bizarros: florestas geridas a partir da Avenida da República, em Lisboa, ou coisas desse género, que sabemos o dano que provocam ao país e ao seu desenvolvimento.” (António Cunha, presidente da CCDR-N, na “Entrevista”, realizada por Luís Miguel Queirós e Manuel Roberto, Público, sábado, 18 de março de 2023, pág.ª 41). Seguindo o anacronismo da velha lógica denunciada pelo sr. presidente da CCDR-N, nas declarações do sr. secretário de Estado, vislumbra-se estar subjacente ao seu pensamento, justificar-se a continuidade das velhas políticas que têm vindo a tornar cerca de 2/3 do território do Continente num espaço de mato, abandonado, sem ninguém que o cultive e defenda e, como tal, condenado a ser pasto de incêndios. Tal “visão” só merece mais um comentário: perante uma maneira de pensar “tão lúcida, esclarecida, inovadora, ousada, equilibrada e justa”, o interior “está bem servido!”… Bem vistas as coisas, o pensamento do referido governante em nada se afasta ou difere – pelo contrário, decalca-a! – da lógica de pensamento sobre o País daqueles “esclarecidos, preocupados com os problemas e amigos do peito” do Nordeste Transmontano, que, há cerca de 40 anos, por ação ou por omissão, mandaram ou permitiram encerrar as linhas férreas de via estreita, que, embora mal, apesar de tudo, iam servindo a população de Trás-os-Montes: a Linha do Sabor, a Linha do Tua e a Linha do Corgo. Em vez de modernizar as linhas e o material circulante de forma a permitir praticar maiores velocidades, reduzir o tempo de viagem e conferir-lhes melhores condições de segurança, conforto e maior comodidade, o Poder Central e a concessionária preferiram encerrar de vez estas linhas férreas que tanto custaram e tempo levaram a serem construídas.

Tendo em conta o teor das declarações proferidas pelo sr. secretário de Estado das Infra-estruturas, que, anuindo ao convite que lhe foi dirigido pela/o sr.ª/sr. Deputados distritais de Bragança do Partido Socialista, se “dignou” deslocar-se a Bragança, para tomar a liberdade de, com a maior desfaçatez e alto e bom som, dar a entender aos “pretensiosos, sonhadores e irrealistas” Transmontanos: “Ora, tomem lá, que é para aprenderem!”

Sabendo que, infelizmente, a quase generalidade dos governos tomam decisões sobre medidas políticas a aplicar em função do número de possíveis eleitores existentes nas localidades, nos municípios e distritos, nas províncias, regiões ou zonas mais importantes do País, os governantes podem, porventura, laborar num erro: esquecer os laços e a ligação afetiva dos naturais que, devido à diáspora, ou dos que, por motivos de estudo, trabalho ou familiares, tiveram que deixar a terra natal para e/migrarem para o estrangeiro ou se fixarem nas grandes cidades do litoral. Se há alguns casos em que, só esporadicamente e por motivos de força maior, voltam de visita à terra de origem, muitos outros – arrisco mesmo dizer a maior parte dos Transmontanos –, mesmo os que residem no estrangeiro, mantêm fortes ligações à terra natal. Nestas situações, pode acontecer que, divididos entre “dois amores” – à terra de origem e àquela onde residem –, a sua opção de voto não seja condicionada apenas por uma das localidades. Assim, é bem possível que, na hora de votar, o façam na(s) força(s) política(s) que, do seu ponto de vista, alguma ou mais coisas importantes fez/fizeram em prol da sua terra-natal.

Tenho sérias dúvidas que alguém ou algum organismo tenham feito o levantamento dos naturais de quaisquer localidades, concelhos, distritos, províncias, regiões e zonas de Portugal a residirem noutros. Podemos, contudo, imaginar os muitos milhares de eleitores transmontanos e a primeira geração dos seus descendentes, que, residindo no estrangeiro ou nas grandes cidades do litoral do País, a sua opção de voto seja condicionada também pela atenção prestada e a ação votada pelas forças políticas ao seu torrão-natal. Seja como for, aqui fica o alerta…


4 respostas para “Será que o Poder Central se redime das políticas que condenaram o Nordeste Transmontano, especialmente a Terra de Miranda, ao despovoamento e ao abandono?”

  1. Concordo com tudo, mas numa altura em que as notícias têm sido de fechar lares.. O pequeno
    concelho de Vimioso, tem 7 bons lares,e uma unidade de cuidados continuados.onde as pessoas são muito bem tratadas..Merecem uma noticia positiva.

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  2. Sancho I, o Povoador, viveu e governou nos séculos bXII e XIII. Não sei se mereceu o epiteto, mas, ao longo dos séculos, o ptoblema persistiu e persistee. É a prova que os governos pensam pouco nas pessoas, preferindo satisfazer maiorias e provocando a desertificação.
    Gostei de ler este “pauzinho na engrenagem”.
    Abraço
    GGalvão

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  3. Concordo plenamente com o que o Sr. Antonio Preto Torrão, que com muita propriedade, conhecimento e lucidez escreveu. Lamento profundamente, a situação em que se encontra Trás-os-Montes, especialmente o Nordeste Trasmontano, de onde saí com meus pais e meus irmãos, há algumas décadas, ainda na tenra idade,em busca de melhores condições de vida, porém o amor que tínhamos a nossa Terra Natal e ao nosso Portugal, que aprendi a amar muito cedo, nas aulas de história e geografia na querida escola de Vimioso, a cujo prédio foi dada outra finalidade, acredito eu que era grande demais para o número infinitamente menor de crianças, do que na minha época, esse amor e orgulho, continuam, apesar de, como foi dito pelo Sr. Antonio Preto Torrão, aprendemos a amar também a terra que nos recebeu e nos deu condições de progredir enquanto seres humanos.As vezes que visitei Portugal,fiquei muito feliz e orgulhosa de ver um país lindo, modernizado, mas profundamente triste de ver as paisagens trasmontanas sem cultivo, as ruas vazias,principalmente de crianças, embora tenha muito mais casas bonitas, modernas, mas desabitadas, pois acho que pertencem a emigrantes que apenas as ocupam nas férias. Com isso, não é preciso pensar muito para concluirmos que, se nada for feito pelo governo central, que contribuiu para essa situação alarmante, infelizmente, é com dor no coração que sinto um fim triste para a nossa querida região, que é rica em história do país e tão portuguesa quanto as regiões litorâneas.😭
    Faço aqui um apelo aos governantes, que salvem a região trasmontana da desertificação,pois vejo, de longe, que só falta vontade política para resolver, assim como para todo o interior de Portugal.

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